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Scorsese radiografa a violência da América contra povos originários em “Assassinos da Lua das Flores”

Em seu novo filme, o italiano Nanni Moretti resolve telefonar para o ítalo-americano Martin Scorsese. Quer saber do diretor, que em breve fará 81 anos, que caminhos ele percorreu, por mais de 50 anos – e a partir de “Táxi Driver” – para trabalhar com o tema da violência, onipresente em sua poderosa filmografia.

Moretti (encarnado no alterego Giovanni) – em seu delicioso e metalinguístico “O Sol do Futuro” – mostra indignação com procedimentos de jovem diretor, que filma assassinato a sangue frio com produção de sua esposa (de Giovanni) e retaguarda financeira coreana.

Na compreensão do alterego de Moretti, trata-se de obra violentíssima e banal, mero entretenimento. Muito distante, portanto, da necessária reflexão sobre o ato de matar. O jovem diretor não age como o polonês Kryzystof Kieslovski, em “Não Matarás”, nem como Coppola, em “Apocalyspe Now”, citado pelo arquiteto Renzo Piano.

Martin Scorsese não atende ao telefonema de Moretti. A ligação cai direto na secretária eletrônica.

Por que relembrar essa brincadeira do diretor de “O Sol do Futuro”?

Porque ela traz, em tom de comédia, significativa reflexão sobre a obra do diretor de “Touro Indomável”, “Os Bons Companheiros”, “Cassino”, “Gangues de Nova York” e “Assassinos da Lua das Flores”. Este último – o vigésimo-quinto longa ficcional de Martin Scorsese, diretor também de 17 documentários – estreia em cinemas de todo o país nessa quinta-feira, 19 de outubro. Dura 3h26’, que voam na tela, tamanhas são suas qualidades estético-éticas e a sedução de sua complexa narrativa.

A violência, o pecado e a derrota dos desvalidos são a força motriz dos principais filmes do grande diretor, criado no seio de família católica italiana na Little Italy nova-iorquina. Ninguém, como ele, fez a anatomia da violência que constituiu os tecidos e órgãos vitais da poderosa América, maior potência capitalista do planeta.

E o incrível é que, além de realizar grandes filmes (e também obras de carregação como “Cabo do Medo” e “Vivendo no Limite”), Scorsese ainda encontra tempo para dirigir documentários da grandeza dos que dedicou ao cinema norte-americano e italiano, dar aulas na instituição que o formou (a NYU) e defender a preservação dos cinemas de geografias não-hegemônicas (pois preside a Film Foundation). Uma instituição que resgata tesouros fílmicos da África, Ásia e América Latina.

“Assassinos da Lua das Flores” é um filme obrigatório. Seu tema, original e perturbador, revela o extermínio do povo indígena Osage, que teve a sorte – e o azar – de ver o petróleo jorrar em seu território, lá pras bandas do Oklahoma. De repente, aquele povo originário ficou milionário. Os wasp (brancos, anglo-saxões e protestantes) não se conformavam em ver aqueles “bugres” andando de carros de último tipo (nos começos do século XX), com belas casas e recheadas contas bancárias. Como é que aqueles “peles vermelhas” podiam ser tão ricos?

Na gênese do filme está um livro de David Grann – “Assassinos da Lua das Flores – Petróleo, Morte e Origem do FBI“– publicado em 2017. O escritor centrou sua narrativa no nascimento do Federal Bureau Investigation, instituição policial criada e comandada pelo poderoso e perigoso J. Edgar Hoover. E, claro, no óleo negro que ajudou a fazer dos EUA a maior potência do século XX (e do XXI).

Scorsese e seu co-roteirista Eric Roth resolveram centrar sua tragédia social em relacionamento nada convencional – o que uniu a indígena Mollie (Lily Gladstone) ao ex-soldado Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), “sobrinho” do poderoso criador de gado William Hale (Robert de Niro).

Ernest é um garanhão de meia-idade, ainda bonitão, que regressa da primeira Guerra Mundial, disposto a se relacionar com mulheres e mais mulheres, sejam de pele branca ou vermelha. E a enriquecer, seja por que método for.

O “tio” é uma cobra. Hábil, ambicioso, tão sedutor, que fala o idioma dos Osage, os enche de mimos superficiais, enquanto mira os dólares advindos do direito de “headdrights” e dos royalties devidos aos legítimos donos da terra. Ou seja, aos indígenas.

O melífluo Hale chama atenção do “sobrinho” para Mollie (interpretada pela atriz que conhecemos no surpreendente “First Cow – A Primeira Vaca da América”), herdeira de verdadeira fortuna. Basta que sejam eliminados os parentes que dividirão com ela os milhões de dólares.

O personagem de Robert de Niro – construído com os complexos matizes scorsesianos e impregnado pelo talento de seu ator-fetiche – vai arquitetar série de assassinatos, com a conivência de muitos integrantes da comunidade wasp, incluindo Ernest (embora Ernest ame Mollie e tenha filhos com ela, ele não foge da engrenagem que levará ao quase-extermínio dos Osage).

Um dado real: a tribo que vivia no território do Oklahoma, de petróleo abundante, perderia 90% de seus integrantes e de seu território, vítima da ganância dos anglo-saxões.

Quando os assassinatos tornam-se escandalosamente numerosos, o recém-criado FBI resolve investigar o que está acontecendo. Chega, então, a Fairfax, o núcleo urbano da região petrolífera, o investigador Tom White (Jesse Plemons). E, aí, para mostrar que é um mestre (praticante privilegiado do Realismo Crítico cinematográfico) Martin Scorsese monta seu “teatro” brechtiano. Ele recorrerá ao “distanciamento crítico”, tão caro ao dramaturgo germânico. E aparecerá em cena como ator. Mais não se conta aqui para não estragar a surpresa.

Devoto de Nossa Senhora do Contexto, Scorsese desenhará doloroso afresco da colonização do território norte-americano banhada pelo sangue dos povos originários. E nos revelará as entranhas da acumulação do capitalismo predatório fertilizado por milhões de dólares. Com as poderosas imagens do mexicano Rodrigo Prieto. Que filme!

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